Parashat Ki Tissá - O Tabernáculo - Uma Concessão às Necessidades Religiosas Humanas?

Neste estudo, do Prof. Kenneth Seeskin - Professor de Filosofia na Northwestern University - refletimos sobre a questão de, por qual motivo, a Divindade precisaria de uma moradia opulenta, construída com metais preciosos e joias, bem como de sacerdotes com roupas coloridas exuberantes?

De acordo com o Rambam, a Divindade não precisa de nada disso de fato; somos nós que precisamos.

Mas, como assim?

Uma casa de luxo do HaShem?

A descrição da Torá da arquitetura e dos implementos do Mishkan - o Tabernáculo, bem como das vestes do sumo sacerdote, contém imagens visuais exuberantes com repetidas referências ao ouro, prata, cores vibrantes, madeira de acácia, linho fino e pedras preciosas. Este tipo de texto em relação ao modo de celebrar o Divino, é incomum, e por uma série de razões:

Detalhes em excesso - Nenhuma outra passagem na Torá contém algo parecido com essa quantidade de detalhes visuais. De outras figuras importantes, não sabemos sequer como estavam vestidos, nem por exemplo, o que Avraham estava vestindo quando levou Itzhak para a montanha, nem fomos informados sobre que roupa Moshe escolheu vestir quando se encontrou com a Divindade, no arbusto em chamas. Até o casaco de Iossef nos deixa apenas imaginando, como exatamente aquela roupa seria — o sentido do termo hebraico פַּסִּֽים <Passe’im> não ajuda por si só, já que tem multiplos usos, dentre os quais, "multi-colorido".

Em contraste com informações assim tão vagas, sabemos exatamente o que o sumo sacerdote vestia, quando entrava no Kodesh HaKodashim - o Santo dos Santos.

[Nahum M. Sarna, Exploring Shemot (New York: Schocken Books, 1968), 196]

Repetição - Ainda mais estranho é a repetição constante de termos no texto. Até este momento, a narrativa da Torá estava altamente abreviada, mas com a descrição do Tabernáculo, palavras aparecem duas vezes na íntegra - Shemot 25-31 e, em seguida, novamente em Shemot 35-40.

Despesas – Outra questão óbvia é, por qual motivo a Divindade precisaria de um Tabernáculo construído de materiais luxuosos, e de um sumo sacerdote todo enfeitado, vestindo linho fino e pedras preciosas? A quantidade de ouro necessária é impressionante. Para fazer tudo de acordo com as ordens da Divindade, seriam exigidos algo como 907 Quilos de ouro refinado — cerca de 43 milhões de dólares, em moeda atual! Quanto mais perto o texto descritivo se aproxima do Santo dos Santos, mais enfatizado o uso do ouro se torna. Para que a Divindade precisa de tudo isso?

A espiritualidade simples na Torá

A opulência do Tabernáculo contrasta e parece contradizer, outras descrições do rito de culto e celebração ao Divino, na Torá. Por exemplo, Shemot 20 observa que:

(יט) וַיֹּ֤אמֶר יְהֹוָה֙ אֶל־מֹשֶׁ֔ה כֹּ֥ה תֹאמַ֖ר אֶל־בְּנֵ֣י יִשְׂרָאֵ֑ל אַתֶּ֣ם רְאִיתֶ֔ם כִּ֚י מִן־הַשָּׁמַ֔יִם דִּבַּ֖רְתִּי עִמָּכֶֽם׃ (כ) לֹ֥א תַעֲשׂ֖וּן אִתִּ֑י אֱלֹ֤הֵי כֶ֙סֶף֙ וֵאלֹהֵ֣י זָהָ֔ב לֹ֥א תַעֲשׂ֖וּ לָכֶֽם׃

(19) יהוה disse a Moshe: Assim você dirá aos israelitas: Vocês viram que eu falei com vocês dos céus:

20:20 – Vocês não devem fazer comigo, Elohim de prata, tampouco façam Elohim de ouro para si.

Aqui, metais preciosos são descritos com desprezo e associados à idolatria. O texto continua com a descrição do que constitui um altar adequado:

(כא) מִזְבַּ֣ח אֲדָמָה֮ תַּעֲשֶׂה־לִּי֒ וְזָבַחְתָּ֣ עָלָ֗יו אֶת־עֹלֹתֶ֙יךָ֙ וְאֶת־שְׁלָמֶ֔יךָ אֶת־צֹֽאנְךָ֖ וְאֶת־בְּקָרֶ֑ךָ בְּכׇל־הַמָּקוֹם֙ אֲשֶׁ֣ר אַזְכִּ֣יר אֶת־שְׁמִ֔י אָב֥וֹא אֵלֶ֖יךָ וּבֵרַכְתִּֽיךָ׃ (כב) וְאִם־מִזְבַּ֤ח אֲבָנִים֙ תַּֽעֲשֶׂה־לִּ֔י לֹֽא־תִבְנֶ֥ה אֶתְהֶ֖ן גָּזִ֑ית כִּ֧י חַרְבְּךָ֛ הֵנַ֥פְתָּ עָלֶ֖יהָ וַתְּחַֽלְלֶֽהָ׃

20:21 – Para mim, façam apenas um altar de terra; sobre ele, vocês oferecerão suas ofertas de Olah, Oferta de Shelamim, ovelhas, cabras e gado. Em todo lugar em que Eu fizer meu nome ser mencionado, virei até vocês e os abençoarei.

20:22 – Se vocês fizerem para mim um altar de pedra, não o construam com pedras lavradas, pois, se vocês usarem qualquer ferramenta nele, o profanarão.

Nesta fonte, o altar da Divindade deveria ser feito de terra ou pedras, não de bronze ou de ouro.

Além disso, não se menciona qualquer roupa especial para os sacerdotes, apenas que o altar deveria ser feito de tal forma que aqueles que servem em suas túnicas simples não se exponham.

(כג) וְלֹֽא־תַעֲלֶ֥ה בְמַעֲלֹ֖ת עַֽל־מִזְבְּחִ֑י אֲשֶׁ֛ר לֹֽא־תִגָּלֶ֥ה עֶרְוָתְךָ֖ עָלָֽיו׃ {פ}

Não suba meu altar por degraus, de modo que sua nudez não seja exposta sobre ele.

Por fim, este texto discute diferentes tipos de altares e considera que devem ser construído em vários lugares. A ideia é que, em qualquer lugar, que um israelita desejar construir um altar, o HaShem aparecerá para abençoar os que estiverem celebrando. A abertura do texto explica a concepção teologica por trás dessa ideia: A Divindade não vive na terra, mas nos céus, e, portanto, não precisa de um lugar terrestre específico.

Habitação entre os israelitas

A ideia de que o HaShem habita nos céus, e só desce à terra para breves visitas, reflete uma concepção muito diferente da ideia de presença do HaShem, estando entre israelitas, do que encontramos nos textos do Tabernáculo. O primeiro mandamento da Divindade a Moshe sobre a construção do Tabernáculo diz:

(ח) וְעָ֥שׂוּ לִ֖י מִקְדָּ֑שׁ וְשָׁכַנְתִּ֖י בְּתוֹכָֽם׃ (ט) כְּכֹ֗ל אֲשֶׁ֤ר אֲנִי֙ מַרְאֶ֣ה אוֹתְךָ֔ אֵ֚ת תַּבְנִ֣ית הַמִּשְׁכָּ֔ן וְאֵ֖ת תַּבְנִ֣ית כׇּל־כֵּלָ֑יו וְכֵ֖ן תַּעֲשֽׂוּ׃ {ס}

Eles devem erigir para mim um santuário, para que Eu viva entre eles. Erijam de acordo com tudo o que eu mostrar a você – o modelo do tabernáculo e de seus utensílios. Eis como você deve erigi-lo.

[Embora a tenda aqui seja chamada de Mishkan, "lugar de habitação", outros textos se referem a ela como Ohel Moed, a tenda do encontro, e mais tarde em Shemot, no final da legislação sobre a oferta diária, somos informados de que é neste local que o HaShem encontrava os israelitas:

שמות כט:מב עֹלַת תָּמִיד לְדֹרֹתֵיכֶם פֶּתַח אֹהֶל מוֹעֵד לִפְנֵי יְ־הוָה אֲשֶׁר אִוָּעֵד לָכֶם שָׁמָּה לְדַבֵּר אֵלֶיךָ שָׁם. כט:מג וְנֹעַדְתִּי שָׁמָּה לִבְנֵי יִשְׂרָאֵל... כט:מה וְשָׁכַנְתִּי בְּתוֹךְ בְּנֵי יִשְׂרָאֵל וְהָיִיתִי לָהֶם לֵאלֹהִים.

Shemot 29:42 – Oferta de Olah regular por todas as gerações, na entrada da Tenda do Encontro diante de HaShem. Pois lá eu me encontrarei com você, e lá falarei com você,

29:43 - e lá eu me encontrarei com os israelitas …

29:45 - Eu ficarei entre os israelitas, e eu serei o seu Elohim..

A descrição de “local de encontro” parece diferente de local de moradia, embora a passagem termine com a declaração de que a Divindade habitará entre os israelitas, que também é o que vemos em Shemot 25: 8.]

O que exatamente se entendia com a ideia do Mishkan ser uma habitação divina não é claro, só no texto.

[Outros lugares na Torá se referem à presença Divina na terra. Por exemplo, no final das regras sobre como tratar assassinos, encontramos:

(לד) וְלֹ֧א תְטַמֵּ֣א אֶת־הָאָ֗רֶץ אֲשֶׁ֤ר אַתֶּם֙ יֹשְׁבִ֣ים בָּ֔הּ אֲשֶׁ֥ר אֲנִ֖י שֹׁכֵ֣ן בְּתוֹכָ֑הּ כִּ֚י אֲנִ֣י יְהֹוָ֔ה שֹׁכֵ֕ן בְּת֖וֹךְ בְּנֵ֥י יִשְׂרָאֵֽל׃ {פ}

Não contaminareis a terra em que vives, na qual Eu habito entre vocês, pois Eu, HaShem, habito entre os filhos de Israel.

Mais perto da ideia nos textos do Tabernáculo, encontramos ao longo de Devarim (12: 5, 12:11, 16: 2, 16: 6, 16:11, 26: 2), somos informados de que a Divindade fará seu nome habitar (לְשַׁכֵּן שְׁמוֹ) ou estabelecer seu nome (לָשׂוּם שְׁמוֹ) no lugar que ele escolher.

[Para uma discussão sobre a diferença entre essas duas expressões, consulte Yair Zakovitch, "לשכן שמו שם לשום שמו שם" - ‘Para fazer com que seu nome habite lá’ ‘para colocar seu nome lá’] Tarbiz 41 (1972): 338-340.]

Quando o Tabernáculo é finalmente construído, ouvimos falar da kavod ("honra" ou "presença") de HaShem enchendo-o:

(לה) וְלֹא־יָכֹ֣ל מֹשֶׁ֗ה לָבוֹא֙ אֶל־אֹ֣הֶל מוֹעֵ֔ד כִּֽי־שָׁכַ֥ן עָלָ֖יו הֶעָנָ֑ן וּכְב֣וֹד יְהֹוָ֔ה מָלֵ֖א אֶת־הַמִּשְׁכָּֽן׃

Moshe não podia entrar na Tenda da Reunião, porque a nuvem tinha se estabelecido sobre ela e a <kavod> do HaShem encheu o Tabernáculo.

A mesma descrição aparece no relato do edifício de Shlomo, o Templo:

(יא) וְלֹא־יָכְל֧וּ הַכֹּהֲנִ֛ים לַֽעֲמֹ֥ד לְשָׁרֵ֖ת מִפְּנֵ֣י הֶעָנָ֑ן כִּֽי־מָלֵ֥א כְבוֹד־יְהֹוָ֖ה אֶת־בֵּ֥ית יְהֹוָֽה׃ {פ}

e os kohanim não puderam permanecer e realizar o serviço por causa da nuvem, pois a kavod do HaShem encheu a Casa do HaShem.

O termo <kavod> é ambíguo, ou seja, tem diferentes tonalidades de sentido dependendo do contexto. Aqui, as descrições do "preenchimento" da kavod do HaShem (מלא) a retratação da estrutura implica algo menos circunscrito do que um corpo...

[Exemplo: uma substância gasosa pode encher uma sala, enquanto um corpo estiver nesta mesma sala. No entanto, em outras passagens, a [Exemplo: uma substância gasosa pode encher uma sala, enquanto um corpo estiver nesta mesma sala. No entanto, em outras passagens, a kavod parece referir-se a um corpo – que não pode estar ocupando o mesmo espaço com outro. Quando Moshe pede para ver a kavod de HaShem em Shemot 33:18, isso implica algo idêntico ou intimamente relacionado a Divindade, dado que o Divino responde que faria o que Moshe pediu, mas teria que cobrir o rosto de Moshe, enquanto passava, de tal modo que Moshe apenas poderia olhar, quando o Elohim já tivesse passado, ‘vendo’ apenas ‘suas costas’.

Embora pareça que o termo <Embora pareça que o termo <kavod> neste caso, se refira a ideia de um corpo físico do HaShem, isso ainda é uma suposição baseada numa leitura literalista do texto. Místicos adotaram esta leitura mas, racionalistas a rejeitam]

...mas se havia mesmo fogo ou alguma substância mais efêmera é difícil de dizer.

[É assim que a kavod foi descrita em outra parte da revelação do Sinai:

שמות כד:טז וַיִּשְׁכֹּן כְּבוֹד יְ־הוָה עַל הַר סִינַי... כד:יז וּמַרְאֵה כְּבוֹד יְ־הוָה כְּאֵשׁ אֹכֶלֶת בְּרֹאשׁ הָהָר לְעֵינֵי בְּנֵי יִשְׂרָאֵל.

Shemot 24:16 - A kavod do HaShem habitou/repousou no Monte Sinai…

24:17 - Agora, a kavod de HaShem parecia, aos olhos dos israelitas, como um fogo consumidor, no topo da montanha.

Não fica claro se o texto está dizendo que a kavod era realmente, o fogo que eles estavam vendo, ou se apenas aparecia com fogo. Místicos e racionalistas discordarão aqui também.]

Seja como for, o Tabernáculo destina-se a abrigar essa manifestação do divino, uma ideia que se baseia na questão teológica original, sobre a opulência do Tabernáculo: Por qual motivo, a Divindade de Israel, que é descrito em outros lugares, como habitando ‘nos céus’, e que pode aparecer em qualquer lugar da terra que desejar, precisaria de uma estrutura para morar?

O estudo acadêmico e crítico da Bíblia Hebraica, aborda tais questões. Estudos indicam que passagens bíblicas contraditórias, foram redigidas por diferentes autores e podem, assim, representar diferentes entendimentos teológicos, sobre a manifestação do HaShem e sua relação com Israel.

Os intérpretes tradicionais, no entanto, não tinham este olhar crítico e precisaram lidar com a Torá, como se fosse um todo uniformizado. E isso nem sempre permitia solucionar satisfatoriamente, todas as questões.

Um desses intérpretes foi o Rambam (rabino Moshe ben-Maimon, 1138-1204), cuja visão filosófica da Divindade, como não física e não composta, o levou a lidar com os textos do Tabernáculo e explicá-los, de uma maneira que seria proporcional ao racionalismo grego-árabe de sua época; contrastante e contradizendo, o movimento místico espanhol que começava a se popularizar e migrar para diversas regiões da Europa.

Para isso, o Rambam desenvolveu um olhar próprio do desenvolvimento do Judaísmo, que é característico da escola de pensamento chamada Racionalista.

Da religião patriarcal à religião do tabernáculo

O Sefer Bereshit descreve Avraham peregrinando pela Terra Prometida, montando altares, e evocando o nome de HaShem. Nada nestes textos descreve roupas opulentas, como as do sumo sacerdote, nem locais de adoração que sejam caros para construir, ou sequer estruturas dentro das quais a Divindade deveria habitar.

Na visão de mundo rabínica, Avraham teria herdado as tradições sobre a celebração ao Divino, de Noah via Shem seu filho. Estas tradições estabelecem os princípios básicos que qualquer sociedade civilizada deveria aderir. Sua construção de altares e a evocação do HaShem parecem ter sido espontâneas: nada é dito sobre uma hora marcada para rituais, ou lugar nomeado perpetuamente. A única prática ritual que marca Avraham como tendo mais do que apenas a relação religiosa comum com a Divindade, teria sido a circuncisão (o brit milá).

[A Mishná, em Kidushin 14: 4 chega a fazer uma hipérbole, dizendo que Avraham “observou todos os mandamentos da Torá” – mesmo sabendo que ele viveu, antes da entrega da Torá. O ponto então, seria que o Noahide observante do Caminho do HaShem, não é ‘menor’ que o Judeu observante, na questão da espiritualidade.]

Mas, se a espiritualidade de Avraham seria o modelo ideal para todos, por que a revelação do Sinai e a Torá, vieram com tantas leis detalhadas?

Por que o ritual de celebração ao divino é legislado com tais minúcias?

E, finalmente - para voltar à nossa pergunta - por qual motivo, o HaShem decide que altares aleatórios de terra, e visitas temporárias eram insuficientes e, em vez disso, “pede” um opulento local de celebração ritual central?

Modelo do Rambam: O Fracasso da Religião Simples

A diferença gritante entre a espiritualidade simples de Avraham e o complexo Tabernáculo sacerdotal, não deixou de ser notado pelo Rambam. Ele tinha uma forte afinidade pela figura de Avraham, vislumbrando-o como um filósofo primitivo que descobriu a Divindade por conta própria.

O Rambam descreve as principais características da espiritualidade de Avraham, como filosóficas (Mishneh Torá: Sefer haMada, "Leis da Idolatria", 1:3):

וכיון שהיו העם מתקבצין אליו ושואלין לו על דבריו היה מודיע לכל אחד ואחד כפי דעתו עד שיחזירהו לדרך האמת עד שנתקבצו אליו אלפים ורבבות והם אנשי בית אברהם ושתל בלבם העיקר הגדול הזה.

E como as pessoas se reuniram com ele e lhe perguntaram sobre suas palavras, ele informava a cada pessoa de acordo com sua compreensão, até que ele o trouxesse para o verdadeiro Caminho, até que ele se reuniu para si, milhares e miríades, e estes foram as pessoas da casa de Avraham, dentro das quais ele plantou esse importante fundamento.

[Esta cena construída pelo Rambam, pode passar a errônea impressão, de que os israelitas primitivos já eram totalmente Monoteístas. Porém, as evidências históricas contradizem isso. Ver nosso estudo: Parashat Le’h Lehá - Quando a Bíblia Hebraica se tornou mono-teísta?]

Por que esse modelo de religião filosófica não continuou?

O Rambam não responde explicitamente a esta pergunta, mas ele nos deixa uma pista no final desta mesma halahá:

ונעשית בעולם אומה שהיא יודעת את ה', עד שארכו הימים לישראל במצרים וחזרו ללמוד מעשיהן ולעבוד כוכבים כמותן... וכמעט קט היה העיקר ששתל אברהם נעקר... ומאהבת ה' אותנו ומשמרו את השבועה לאברהם אבינו עשה משה רבינו רבן של כל הנביאים ושלחו, כיון שנתנבא משה רבינו ובחר ה' ישראל לנחלה הכתירן במצות והודיעם דרך עבודתו.…

Uma nação que conhecia a Divindade nasceu no mundo, até que Israel acabou passando muitos anos no Egito e começou a aprender com seus caminhos e a praticar idolatria... O princípio [do monoteísmo] que Avraham alimentou, estava quase perdido... Do amor da Divindade por nós, e sua manutenção do juramento ao nosso pai Avraham, ele fez do nosso mestre Moshe, chefe de todos os profetas, e o enviou. Uma vez que Moshe nosso mestre profetizou, e a Divindade escolheu Israel como sua herança, ele os coroou com mandamentos, e ensinou então a maneira como ele deveria ser adorado…

A sugestão é que a ‘religião’ de Avraham, era muito intelectual para ter poder de permanência a longo prazo. Uma vez que seus descendentes e seguidores se viram entrincheirados numa cultura pagã muito popular, eles perderam seu caminho.

Seria por isso que, quando a Divindade decide resgatar os israelitas da escravidão egípcia, para usar a expressão do Rambam, ele os "coroa com mandamentos".

A ideia era que, querendo evitar a baixa popularidade da religião intelectual de Avraham, a Divindade introduziu leis rituais em sua revelação no Sinai, incluindo festivais, leis alimentares, artigos especiais de vestuário e um lugar reconhecível de celebração ritual.

A lógica por trás dessa ideia seria que a maioria das pessoas, precisaria de mais do que argumentos abstratos e concepções adequadas, para serem participantes completos, de uma tradição religiosa. É aí que entram festivais, leis alimentares e outros mandamentos específicos em relação ao tempo e ao lugar. Além de providenciarem ritos concretos, estes rituais unem os congregantes socialmente e, assim, ajudam a estabelecer um senso de comunidade e povo.

Para ter um apelo de longo prazo, e a uma grande quantidade de pessoas, os rituais estabelecidos precisam ser manifestações tangíveis, como eram os rituais no templo.

Embora a religião ideal, fosse a desmistificada e filosófica, a flexível e adaptável, tal qual a que era praticada por Avraham e pelos outros patriarcas, que alcançaram sem necessidade de muitos rituais, piedade excepcional; seria difícil ver como povos ainda primitivos poderiam exercer tal modelo de vida. A verdade é que, a grande maioria das pessoas é devotada a ideias místicas, tem pouco estudo (ou, pouco interesse no estudo) sendo incapazes de lidar com ideias elevadas e abstratas. A tudo isso se soma, especialmente, o fato da cultura religiosa circundante ter sido tão diferente e muito mais popular. Os ritos idólatras eram muito mais chamativos, pois além das concepções mágicas, continham festas com muita bebida e sexo ritual.

O culto no Templo como uma concessão – não, um Ideal

É famosa a explicação do Rambam para a Torá adotar um culto de Ofertas. Já no século XII se considerava que, a ideia de “abater animais para Deus”, era uma expressão primitiva, violenta e retrógrada de como celebrar a Divindade. Matar animais, não era mais visto por todos, como meio de agradar uma Divindade. Durante séculos, o movimento místico justificou o serviço de Ofertas, apelando para significados mágicos dos rituais e procurando enfatizar que, “haveria mistérios” naqueles rituais que, exigiriam que Judeus desejassem seu retorno. Hoje em dia porém, mesmo com a popularidade do misticismo, este discurso já não é tão popular e, a maior parte das pessoas, não acha que deveríamos restaurar o serviço de Ofertas do Templo – nem mesmo, sob desculpas mágicas e místicas.

Mas, além deste olhar sobre as Ofertas, também criou polêmica, a explicação do Rambam sobre a adoção de um local de celebração ritual específico. O Rambam escreve em seu Guia dos Perplexos (Tomo 3, capítulo 32, versão Pines):

Portanto, Ele - bendito seja - suportou que os tipos de adoração mencionados continuassem, mas transferiu-os de coisas criadas ou imaginárias e irreais, para seu próprio nome - bendito seja - ordenando-nos a praticá-los em relação a Ele - bendito seja. Assim, Ele nos ordenou a construir um Templo para Si (Shemot 25:8): "E deixe-os fazer a mim um Santuário".

Segundo o Rambam então, a Divindade percebeu que uma transição repentina da idolatria para o monoteísmo absoluto, seria impossível. Como ele explica, as pessoas não são capazes de abandonar, de repente, tudo ao que se acostumaram. E idolatria e misticismo são, sobretudo, maus hábitos!

Então, se os egípcios tinham um culto por meio de ofertas, os israelitas também teriam; se os egípcios tinham um sacerdócio formal e prescrevessem funções como queima de incenso, os israelitas também teriam; se os egípcios praticavam sua religião em ambientes luxuosos, os israelitas também o fariam. Se os egípcios adoravam o Faraó, construindo uma tenda de guerra luxuosa para ele, os israelitas, construiriam o Mishkan – cujo modelo é exatamente o modelo da tenda de guerra do faraó – só que, para celebrar o HaShem!

Assim, o Rambam explica que a beleza do Templo (ou Tabernáculo) não comunica nada do que a Divindade precisa, mas atinge o acorde certo, com os adoradores humanos, dado seu baixo nível intelectual e lentidão no aprendizado e desenvolvimento (3. 45):

Você sabe até que ponto a Torá corrobora a crença na grandeza do Santuário e o temor que sentiam por ele, de modo que ao vê-lo, o homem deveria ser tomado por um sentimento de submissão e servidão.... Além disso, para exaltar o Templo, o posto de seus servos foi exaltado, os sacerdotes e levitas foram destacados, e os sacerdotes usavam as roupas mais esplêndidas, melhores e mais bonitas...

Desta forma, os israelitas seriam – por assim dizer - “desmamados” da idolatria, em etapas. Essa visão confirma a pesquisa histórica, de que os israelitas eram idólatras e, que o Templo servia como meio de os tirar do culto idólatra total, mudando aos poucos, o foco de sua atenção.

A arqueologia confirmou algumas das declarações do Rambam aqui. Templos do Antigos Oriente Próximo, eram muitas vezes grandes e opulentos, e acreditava-se que os deuses ou deusas, se manifestavam em uma imagem especialmente preparada (ou ídolo) que habitavam dentro do templo.

[Michael B. Hundley, Gods in Dwellings: Temples and Divine Presence in the Ancient Near East, Writings from the Ancient World Supplement series (Atlanta: SBL, 2013).]

Assim, um templo opulento para o HaShem, e alguma imagem de sua habitação dentro, teria sido esperado entre os israelitas. Por essa razão, ensina o Rambam, a Divindade decidiu apenas ‘permitir’ essa forma de celebração ritual, entre seu povo.

Tudo isso implica que os mandamentos não foram dados num vácuo e que, não são ritos mágicos.

Em vez disso, a Divindade levou em conta as circunstâncias históricas em que as pessoas se encontravam, e ajustou os mandamentos, para encaixá-los naquela realidade.

Uma aplicação moderna para a visão do Rambam

De qualquer modo, a ideia de Avraham como um filósofo antigo é uma criação em linguagem de Midrash, ou seja, uma narrativa interpretada através de um olhar racionalista, mas sem base histórica. O que a base história nos diz, de fato? Que os israelitas foram, por quase toda sua história antiga, Idólatras politeístas – o HaShem – para eles, era mais “um” entre varias divindades e, apenas com o tempo, os israelitas passaram a compreender a questão da Unicidade da Divindade.

[A visão do Rambam representa uma visão tradicional, não obstante. Séculos antes, Flávio Josefo também achava que Avraham era, como se fosse, um ‘cientista’. Ver o trabalho de Annette Yoshiko Reed, “Abraham as Chaldean Scientist and Father of the Judeus: Josephus," Ant. " 1.154-168, e o discurso greco-romano sobre astronomia]

De qualquer modo, o Rambam simplesmente considerou que, qualquer pessoa que ‘subisse’ ao nível de profeta, só conseguiria isso, depois de ter aperfeiçoado seu Intelecto. É neste sentido, que ele considerava Avraham um ‘filósofo’.

Mas, não temos evidência alguma, no texto da Torá para apoiar esta concepção sobre Avraham.

O Rambam ensina isso, como meio de mostrar que, as leis da Torá não eram para ser entendidas como “ritos mágicos”. E também, para que pudessem ter a compreensão que, com o passar o tempo, várias “leis” da Torá, naturalmente se tornaria obsoletas (vide: lei de casamento levirato, por exemplo) e, portanto, deveríamos considerar o sentido das regras, para além do mero ritual. Temos que pensar sempre na fraqueza intelectual humana, e no poder atrativo da cultura idólatra.

Esta é a reconstrução filosófica do Rambam – procurando desmistificar a Torá e seus mandamentos – mas, não é o que chamamos de leitura <peshat> (contextual ou simples) do texto. Pelo contrário: A leitura simples, mostra um Israel idólatra e politeísta...

No entanto, sua visão contém uma importante concepção psicológica, a respeito das atitudes humanas sobre culto religioso.

Um tabernáculo luxuoso, presidido por um sumo sacerdote adornado com linho fino e pedras preciosas, teria sido projetado para impressionar mesmo, para inspirar temor, de uma maneira muito humana e terrena, dando ao povo simples e ignorante, um símbolo tangível, representando a presença Divina. Os israelitas poderiam ver - com seus próprios olhos como se fosse - que a Divindade estava com eles, e os guiaria pelo deserto.

Mais de 3.000 anos após os supostos eventos no deserto, vemos a mesma psicologia funcionando:

Uma religião desprovida de festivais, rituais, rezas, canções, etc. Seria considerada insatisfatória, pela maior parte das pessoas, mesmo atualmente...

Embora possamos entender que o Divino não tem limites – nem físicos, nem terrestres - reconhecemos em nós mesmos – em nossa Tradição - uma necessidade de ritual, bem como de espaços físicos que inspirem temor, para nos ajudar a nos dar uma noção da presença de a Divindade. É por esta razão, que os ritos judaicos tem como principal fundamento, a prática nos lares, a fim de que, nossas casas sejam nossos Templos, dentro dos quais o Divino “habite” conosco, e onde poderemos diariamente interagir com o Sagrado.

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